segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Direito à Memória e à Verdade.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009
Publicado em 2007, o livro Direito à Memória e à Verdade é um relatório final dos trabalhos da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos do Ministério da Justiça, que atuou durante 1995 e 2006, analisando 339 casos de possíveis vítimas da ditadura militar de 1964/85. Tem como objetivo contribuir para que o Brasil avance na consolidação do respeito aos Direitos Humanos, sem medo de conhecer a sua história recente. Registra para a história o resgate dessa memória. Só conhecendo profundamente os porões e as atrocidades daquele lamentável período de nossa vida republicana, o País saberá construir instrumentos eficazes para garantir que semelhantes violações dos Direitos Humanos não se repitam nunca mais.

Procurando no livro, encontrei a descrição dos casos de Stuart e Zuzu, que seguem abaixo:
"STUART EDGAR ANGEL JONES (1945-1971)
Número do processo: 197/96
Data e local de nascimento: 11/01/1945, Salvador (BA)
Filiação: Zuleika Angel Jones e Norman Angel Jones
Organização política ou atividade: MR-8
Data e local do desaparecimento: 14/05/1971, Rio de Janeiro (RJ)
Data da publicação no DOU: Lei nº 9.140/95 - 04/12/95

Stuart Edgar Angel Jones foi assassinado sob terríveis torturas na Base Aérea do Galeão, no Rio de Janeiro. Morreu na noite de 14 de maio de 1971 e o nome dele consta da lista de desaparecidos políticos anexa à Lei nº 9.140/95. O caso gerou grande repercussão nacional e internacional.

Filho da estilista de alta costura Zuzu Angel com o norte-americano Norman Angel Jones, irmão da colunista social Hildegard Angel, Stuart nasceu em Salvador e cresceu no Rio de Janeiro. Apaixonado por esportes, praticou tênis, natação, capoeira, levantamento de peso e remo. Era estudante de Economia na Universidade Federal do Rio de Janeiro, tendo trabalhado também como professor. Em 18/08/1968, havia casado com Sonia Maria Lopes de Moraes, que também seria morta em 1973, em São Paulo. Moravam na Tijuca. Militante do MR-8 desde o período em que a organização tinha o nome de Dissidência da Guanabara, Stuart, conforme documentos dos órgãos de segurança, integrou sua Direção Geral a partir de meados de 1969, ao lado de Daniel Aarão Reis e Franklin de Souza Martins. Também era apontado como participante de diversas ações armadas e se presume que os militares o torturaram com tamanha brutalidade porque pretendiam, através dele, chegar a Carlos Lamarca, recentemente integrado à organização.

Stuart foi preso por volta das 9h da manhã do dia 14, na avenida 28 de Setembro, em Vila Isabel, zona norte do Rio de Janeiro, por agentes do CISA. As circunstâncias de sua morte sob torturas foram narradas, em carta a Zuzu, pelo preso político Alex Polari de Alverga, que esteve com ele naquela unidade da Aeronáutica, na Base Aérea do Galeão. “Em um momento retiraram o capuz e pude vê-lo sendo espancado depois de descido do pau-de-arara. Antes, à tarde, ouvi durante muito tempo um alvoroço no pátio do CISA. Havia barulho de carros sendo ligados, acelerações, gritos, e uma tosse constante de engasgo e que pude notar que se sucedia sempre às acelerações. Consegui com muito esforço olhar pela janela que ficava a uns dois metros do chão e me deparei com algo difícil de esquecer: junto a um sem número de torturadores, oficiais e soldados, Stuart, já com a pele semi-esfolada, era arrastado de um lado para outro do pátio, amarrado a uma viatura e, de quando em quando, obrigado, com a boca quase colada a uma descarga aberta, a aspirar gases tóxicos que eram expelidos”.

Zuzu Angel procurou o filho infatigavelmente, abordando autoridades nacionais e internacionais e concedendo entrevistas a quantos veículos de imprensa tivessem a coragem de publicá-las. Conseguiu fazer chegar sua denúncia ao então senador Edward Kennedy, que levou o caso à tribuna do Senado dos Estados Unidos. Pessoalmente, conseguiu entregar ao secretário de Estado Henry Kissinger, em visita ao Brasil em fevereiro de 1976, uma carta com a denúncia e um exemplar do livro de Hélio Silva, onde era relatada a morte de Stuart. Esse historiador avalia que o afastamento e a posterior reforma do brigadeiro João Paulo Penido Burnier, denunciado como autor do crime, e a própria destituição do ministro da Aeronáutica Márcio de Souza e Mello, foram desdobramentos das pressões internacionais sobre o governo Médici. Todos os principais jornais estrangeiros registraram o fato, em especial o Washington Post e Le Monde. No Brasil, os diários O Estado de São Paulo e Jornal do Brasil conseguiram publicar matérias sobre o caso, apesar da censura.

Zuzu foi morta, em março de 1976, sem nunca descobrir qualquer indício do paradeiro do filho. O desaparecimento de Stuart e a luta de Zuzu foram evocados por Chico Buarque e Miltinho na canção Angélica, de 1977, e levados ao cinema, em 2006, pelo diretor Sérgio Rezende, tendo a atriz Patrícia Pilar atuado como a mãe de Stuart.

No Relatório do Ministério da Marinha, apresentado ao ministro da Justiça Maurício Corrêa em 1993, consta que Stuart foi morto no Hospital Central do Exército, mas indicando a data incorreta de 5 de janeiro de 1971. O Relatório do Ministério da Aeronáutica faz menção às denúncias feitas por Alex Polari mas, em vez de esclarecer as circunstâncias da morte, estende-se falando sobre as atividades do denunciante. Limita-se a informar: “neste órgão não há dados a respeito da prisão e suposta morte de Stuart Edgar Angel Jones”.

Passados 17 anos da morte de Stuart, Amílcar Lobo, médico que atuava no DOI-CODI/RJ e que teve seu registro profissional cassado por cumplicidade ou conivência com as torturas, confessou tê-lo atendido no quartel da PE antes de sua transferência para a Base Aérea do Galeão. “Ele tinha equimoses no abdome e tórax causados provavelmente por socos (...) dei a ele analgésicos”, relatou. Disse, ainda, que Stuart estava consciente mas se recusou a lhe dirigir a palavra. No livro Desaparecidos Políticos, Reinaldo Cabral e Ronaldo Lapa escrevem: “Para o desaparecimento do corpo existem duas versões. A primeira é de que teria sido transportado por um helicóptero da Marinha para uma área militar localizada na restinga de Marambaia, na Barra de Guaratiba, próximo à zona rural do Rio, e jogado em alto-mar pelo mesmo helicóptero. Mas, de acordo com outras informações, o corpo de Stuart teria sido enterrado como indigente, com o nome trocado, num cemitério de um subúrbio carioca, provavelmente Inhaúma. Os responsáveis: os brigadeiros Burnier e Carlos Afonso Dellamora, o primeiro, chefe da Zona Aérea e, o segundo, comandante do CISA; o tenente-coronel Abílio Alcântara, o tenente-coronel Muniz, o capitão Lúcio Barroso e o major Pena – todos do mesmo organismo; o capitão Alfredo Poeck – do CENIMAR; Mário Borges e Jair Gonçalves da Mota – agentes do DOPS”. O caso foi levado também ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, que naquele período, e particularmente na gestão do ministro da Justiça Alfredo Buzaid, desempenhou um papel meramente homologatório perante as violências praticadas pelo Estado ditatorial. Em 1972, por 8 votos a 1, o caso foi arquivado, sendo surpreendente o fato de o representante da OAB no órgão, Raymundo Faoro, ter se alinhado em seu voto com essa maioria, onde estava também o senador Filinto Müller, notório torturador durante o Estado Novo."

"ZULEIKA ANGEL JONES (1923 – 1976)
Número do processo: 237/96
Data e local de nascimento: 05/06/1923, Curvelo (MG)
Filiação: Francisca Gomes Netto e Pedro Netto
Organização política ou atividade: denúncia da morte do filho como resultado de torturas
Data e local da morte: 14/04/1976, Rio de Janeiro (RJ)
Relator: Luís Francisco Carvalho Filho
Deferido em: 25/03/1998 por 4x3 (votos contra do general Oswaldo Pereira Gomes, Paulo Gonet Branco e João Grandino Rodas)
Data da publicação no DOU: 27/03/1998

“Se algo vier a acontecer comigo, se eu aparecer morta, por acidente, assalto ou qualquer outro meio, terá sido obra dos mesmos assassinos do meu amado filho”. O trecho da carta escrita em 23/04/1975 pela estilista Zuleika Angel Jones, conhecida como Zuzu Angel, entregue ao compositor Chico Buarque e outros amigos, representou uma verdadeira premonição a respeito de sua morte um ano depois.

Zuzu Angel morreu em 14/04/1976, num acidente automobilístico à saída do túnel Dois Irmãos, no Rio de Janeiro. A suspeita de que esse acidente tivesse sido provocado envolveu imediatamente todas as pessoas bem informadas sobre o que era o aparelho de repressão política do regime militar. Mas foi somente através da CEMDP que se tornou possível elucidar os fatos. Restou provado que sua morte foi desdobramento e conseqüência da morte de seu filho Stuart Edgard Angel Jones, em 1971, caso já apresentado neste livro-relatório.

Profissional de sucesso – vestia atrizes como Liza Minnelli e Joan Crawford –, Zuzu conseguiu transformar o desaparecimento de seu filho Stuart num acontecimento que provocou forte desgaste internacional para o regime militar brasileiro. Com isso, despertou a ira dos porões da ditadura, que passaram a vê-la como ameaça. Buscando incansavelmente o paradeiro do filho, esteve nos Estados Unidos com o senador Edward Kennedy; furou o cerco da segurança norte-americana e conversou com Henry Kissinger, em visita ao Brasil; prestou detalhado depoimento ao historiador Hélio Silva; escreveu ao presidente Ernesto Geisel, ao ministro do Exército Sylvio Frota, ao cardeal Dom Paulo Evaristo Arns e à Anistia Internacional. Em um de seus desfiles, estampou os figurinos com tanques de guerra e anjos tristes. Quando começou a receber ameaças de morte, alertou os amigos. Zuzu estava absolutamente sóbria na noite do acidente e uma semana antes tinha feito revisão completa em seu carro que, sem aparente motivo, desviou-se da estrada, capotando diversas vezes em um barranco. A análise das fotos e dos laudos periciais, as inúmeras contradições e omissões encontradas no inquérito e depoimentos de testemunhas oculares compuseram uma base robusta para a decisão da CEMDP reconhecendo a responsabilidade do regime militar por mais essa morte de opositor político.

De início, o relator do caso na Comissão Especial recomendou o indeferimento, que só recebeu dois votos contrários. Mas a família de Zuzu decidiu exumar o corpo e entrou com recurso, levando o relator a mergulhar na investigação dos novos dados. A exumação foi realizada por Luís Fondebrider, da Equipe Argentina de Antropologia Forense. Foram também apresentadas novas testemunhas, entre elas o advogado Carlos Machado Medeiros – filho de um ex-ministro da Justiça de Castello Branco – que trafegava pela estrada Lagoa-Barra da Tijuca e forneceu uma declaração escrita afirmando que : “(...) dois veículos abalroaram o Karmann Ghia azul de uma pessoa que, logo depois, na manhã seguinte, constatei ser Zuzu Angel”. Com medo de represálias, contou apenas aos amigos. Três deles confirmaram integralmente essa declaração perante o relator, Luís Francisco Carvalho Filho, que não conseguiu falar pessoalmente com o advogado Carlos Medeiros que também sofreu um acidente automobilístico causador de graves seqüelas e problemas de memória. Outros depoimentos, recolhidos na segunda fase do processo, foram o da psiquiatra Germana Lamare – a quem Zuzu contou estar sendo ameaçada de morte – e de Marcos Pires, estudante residente na Barra da Tijuca que escutou o ruído do acidente e, ao chegar ao local, já encontrou uma dúzia de carros oficiais, a maioria da polícia, ao redor do automóvel destruído de Zuzu. As informações foram relatadas em uma carta enviada a Hildegard, filha de Zuzu e colunista do jornal O Globo. Mais tarde, em depoimento prestado a Nilmário Miranda em 12/02/1996, ele admitiu ter presenciado o acidente: “Eu só vi um carro saindo (do túnel) e logo em seguida um outro carro que emparelha com esse carro. (...) Eu vi quando o carro que ultrapassa o carro da direita (...) abalroa este carro (...) e faz com que ele caia a uma distância que estimei na hora em cinco metros (...)”. A versão de Marcos Pires contrariava frontalmente o laudo oficial do acidente e praticamente dirimiu todas as dúvidas.

Em seu voto final pela aprovação do requerimento, Luís Francisco recuperou as inúmeras contradições do caso, que o levaram a contratar Valdir Florenzo e Ventura Raphael Martello Filho, especialistas em perícias de trânsito em São Paulo, para analisar os documentos policiais. Em relatório minucioso eles argumentam: “Ao reexaminar o laudo original, duas circunstâncias chamaram minha atenção. Em primeiro lugar, o documento é instruído com 16 fotografias mas, aparentemente, nenhuma delas se destinava a mostrar, especificamente, as marcas da derrapagem (28 metros) na pista e as marcas da atritagem nos pneus dianteiros. Em algum lugar, na perspectiva de um observador leigo, surgiram as seguintes indagações: o meio-fio da direita seria um obstáculo capaz de provocar uma mudança de trajetória tão drástica como a que foi descrita? Levando-se em consideração que, segundo os próprios peritos, o meio-fio é de altura normal e que, segundo as fotos que instruem o laudo da época estava visivelmente coberto por vegetação rasteira, o veículo, naquela trajetória, não iria simplesmente transpor o obstáculo? (...)”.

Os peritos também descartaram a possibilidade de Zuzu ter dormido ao volante: “a dinâmica pretendida pelo laudo correspondente ao exame do local é absolutamente inverossímil. Primeiro porque um veículo Jamais mudaria de direção abruptamente única e tão somente por conta do impacto de qualquer de suas rodagens contra o meio-fio, qual seria galgado facilmente, projetando-se o veículo pelo talude antes de chegar ao guarda-corpo do viaduto. Segundo porque, sendo o meio-fio direito da auto-estrada perfeita e justamente alinhado com o guarda-corpo do viaduto, mesmo que o veículo se desviasse à esquerda, tal como o sugerido pelo laudo, desviar-se-ia do guarda-corpo, podendo, se muito, chocar o extremo direito da dianteira. Terceiro porque, mesmo que se admitisse a trajetória retilínea final, nos nove metros consignados pelo laudo, tendo-se em conta que o veículo chocou a dianteira esquerda e que não havia mais nada à direita, a não ser a rampa inclinada da superfície do talude, teríamos que aceitar que as rodas do lado direito ficariam no ar e o veículo perfeitamente em nível até que batesse no guarda-corpo, o que, evidentemente seria impossível”.

Em 1987, Virginía Valli, publicou o livro “Eu, Zuzu Angel, procuro meu filho – a verdadeira história de um assassinato político”. Em 2006, o diretor Sérgio Rezende levou às telas a cine-biografia da estilista Zuzu Angel, interpretada pela atriz Patrícia Pilar. A música que Chico Buarque e Miltinho compuseram, em 1977, em sua homenagem, evoca a dor de Zuzu e uma das versões existentes para o desaparecimento do corpo do filho Stuart – jogado de helicóptero no Atlântico –, mencionando também os figurinos que ela apresentou no desfile com o motivo de anjos."

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